quinta-feira, 1 de março de 2012

Carta aberta ao ex-ministro da Justiça e futuro ex-sócio do Paulistano, José Carlos Dias

Em declaração à coluna sensacionalista de um jornal, o advogado e ex-ministro da Justiça José Carlos Dias ameaçou se desligar do Club Athletico Paulistano caso a associação se recuse a aceitar que um sócio gay inclua o parceiro como dependente. "Eu tenho nojo de pisar num clube em que prevaleça esse comportamento discriminatório odioso", diz. "O que eu vou fazer lá?" 

Pois bem Sr. José Carlos Dias, me vejo na obrigação de lhe informar que o Paulistano já recusou a inclusão do parceiro gay como dependente, que este “comportamento odioso e discriminatório” já prevaleceu, e que o senhor não tem nada mais a fazer num local que lhe provoca nojo.  Se for um homem de palavra, deverá se desligar imediatamente do clube.

O clube Paulistano, do qual sou sócio desde que nasci há 36 anos e que frequento diariamente, é uma propriedade privada “coletiva”, ou seja, com muitos donos.  São 25 mil sócios, dos quais 9.500 são proprietários de títulos e o restante, dependentes de alguns destes.  Eu sou um destes sócios titulares e possuo uma cota de 1/9.500 do clube.  Gerir uma empresa com apenas 2 sócios ou mesmo ser proprietário em conjunto de um imóvel já é algo que pode gerar uma série de disputas, imagine então uma propriedade com 9.500 donos.

Associações são geralmente regidas por estatutos previamente estabelecidos em comum acordo entre os donos, e o Paulistano não é diferente.  É através de seu estatuto que os 9.500 donos administram sua propriedade e resolvem disputas.  Periodicamente, alguns desses donos vendem sua parte e se desligam da sociedade, e novas pessoas compram um título e passam a fazer parte da sociedade, concordando com as regras de gestão estabelecidas para esta propriedade coletiva.  O estatuto atual faz do Paulistano uma Democracia Representativa – eleições são realizadas periodicamente e os conselheiros eleitos decidem as questões do clube em assembleia, pelo poder autorizado pelos titulares.

E foi este conselho democrático quem rejeitou quase que unanimemente (apenas 1 dos 213 conselheiros votou a favor) um requerimento de um associado que pretendia incluir como sócio dependente seu companheiro.  Este associado é o médico Ricardo Tapajós, que queria incluir seu companheiro amoroso, o também médico Mario Warde Filho como dependente.  O estatuto do clube possui regras claras sobre quais requisitos devem ser atendidos para que um associado possa incluir outra pessoa como seu dependente, e estes requerimentos não são preenchido por Tapajós – o conselho apenas ratificou o estatuto.  Warde Filho poderia então comprar um título e se tornar sócio, como qualquer outra pessoa pode fazer.

Até aí, tudo bem, um dos 9.500 donos do clube arguiu com os demais para ter sua solicitação atendida.  Não conseguiu.  Porém, o que se seguiu foi uma atitude lamentável, uma tentativa de violar através do uso ou ameaça do uso de violência física a soberania dos proprietários e sua democracia interna.  Os dois médicos recorreram à um grupo intruso fortemente armado (o estado), solicitando que ele obrigasse os 9.500 donos do clube a aceitar suas vontades, na marra.  O estado, acostumado a violar a propriedade privada alheia, prontamente atendeu a solicitação da dupla.  É um bom exemplo da chamada lei da selva, a lei do mais forte: quando a argumentação racional torna-se irrelevante e a ameaça de violência se torna o determinante das ações.  

O clube está recorrendo desta decisão tomada pelo grupo intruso (recorrendo para ele mesmo, algo como um “por favor, não me bate” ou “deixe eu mandar na minha própria propriedade”), mas, se efetivada, esta decisão estatal unilateral seria apenas mais uma dentre tantas violações da propriedade dos associados impostas violentamente sobre os proprietários.  Por exemplo, o clube já é obrigado a exigir exame médico para uso da área da piscina, e a proibir o fumo em todo ambiente com teto em suas dependências, independente de qual seja a vontade dos donos.  O Sr. José Carlos Dias que já fez parte do poder coercitivo está habituado a passar por cima da soberania dos proprietários com a força das armas.

No entanto, Sr. José Carlos Dias, nenhuma ameaça de violência vai conseguir mudar a vontade do clube, representada por seus conselheiros.  Se a decisão da Justiça do estado brasileiro for efetivada, Warde Filho será aceito como sócio dependente, mas a decisão democrática do clube não terá sido alterada, apenas terá sido violada e desrespeitada através da violência.  Mesmo assim, segundo suas próprias palavras, o senhor continuará sem motivos para frequentar o clube, local onde prevalece uma postura que o enoja.  

Mas do que exatamente o senhor sente aversão?  Discriminação sexual não ocorre no Paulistano, tanto é que o clube conta com diversos sócios homossexuais e bissexuais (incluindo até um travesti), e nenhum deles está ameaçado de ser expulso do clube por conta de sua sexualidade.  O próprio Warde Filho poderia comprar um título de sócio, mesmo sendo um homossexual assumido.  Portanto, descartada a alternativa de uma “homofobia institucionalizada” (diga-se de passagem, algo que qualquer associação privada deveria ter o direito de exercer), seu ódio parece ser contra o ato de discriminação em si, o que faz com que nada mais faça sentido, já que discriminar é algo correto e natural, é algo indissociável do conceito de propriedade privada (que implica em privação).   O senhor discrimina quando vai contratar um advogado para seu escritório, quando escolhe o restaurante que vai almoçar e a gravata que vai comprar – enfim, toda ação humana contém uma discriminação.  

Talvez o senhor esteja usando o termo “discriminação” no sentido jurídico, definido não como o sentido utilizado por mim acima, o “da faculdade de distinguir, discernimento ou ação de separar, segregar, pôr à parte”; mas, como definido no dicionário Houaiss, de “ato que quebra o princípio de igualdade, como distinção, exclusão, restrição ou preferências, motivado por raça, cor, sexo, idade, trabalho, credo religioso ou convicções políticas”.  Bem, neste caso o senhor estaria apoiando o próprio ato que considera odioso, já que se a regra do estatuto válida igualmente para todos os sócios e pretendentes a sócios fosse quebrada, isso seria um ato de discriminação – adeus princípio de igualdade; bem vinda exceção.

Concluindo, devo parar de especular sobre a motivação de seu iminente desligamento do clube para propor uma nova regra estatutária a ser votada pelos conselheiros.  É uma regra que consta em outra associação privada, a FIFA.  O artigo 59 de seu estatuto proíbe que seus associados submetam disputas a um tribunal de justiça comum, sob pena de expulsão.  Com esta nova regra, Ricardo Tapajós seria expulso do clube por não respeitar a soberania de sua democracia interna.  E aproveito para dizer que conforme o artigo 29 do estatuto vigente do Paulistano, um sócio possui o direito de “representar contra a admissão de novos associados”, e caso Warde Filho perca a ação na Justiça estatal e resolva comprar um título pelas vias que todos os outros seres humanos estão sujeitos, iriei fazer o que estiver ao meu alcance para impedir sua associação.  Não por qualquer opção sexual que ele possua, isto realmente não me interessa, mas pela opção moral (ou imoral) que ele possui, de não respeitar a propriedade privada alheia, esta sim uma atitude odiosa e intolerável.

Fernando Chiocca, sócio do paulistano há 36 anos